Master Gardener (2022) de Paul Schrader.
Master Gardener (2022) de Paul Schrader.
— A Raffaella certamente não pensa que é infeliz. Enterrou todos os seus pensamentos. É infeliz mas faz de modo a não o dizer, para poder viver.
— E, aliás — disse —, acaba-se sempre por viver assim.
— E tu também — disse eu — com o tempo, à medida que avança, acabarás por enterrar os teus pensamentos? Acreditas nisso, tu?
— Claro — disse. — E até, de certo modo, já comecei. Se não como faria?
— Nestes meses — disse —, enterrei tantos dos meus pensamentos. Cavei-lhes uma pequena fossa.
— Que queres dizer? — disse eu. — Nestes meses, nestes últimos meses, desde que és meu noivo?
— Mas, sim, claro — disse. — E tu também o sabes. Estamos quase sempre calados, agora, juntos. E estamos quase sempre calados porque comecámos a enterrar os nossos pensamentos, bem no fundo, bem no fundo de nós. Depois, quando reaprendemos a falar, diremos apenas coisas inúteis.
— Dantes — disse —, ocorria-me dizer-te tudo o que me passava pela cabeça. Agora já não. Agora desapareceu-me a vontade de te contar as coisas. Aquilo que vou pensando, conto um pouco a mim mesmo e, depois, enterro-o. Depois, pouco a pouco, não contarei mais nada nem sequer a mim mesmo. Enterrarei tudo de imediato, qualquer vago pensamento, antes mesmo que tome forma.
—Natalia Ginzburg, As Palavras da Noite, Relógio D’Água 2023 (1961)
Um dia encontramos a pessoa certa. Ficamos indiferentes, porque não a reconhecemos: passeamos com a pessoa certa pelas ruas dos subúrbios, ganhamos pouco a pouco o hábito de passear juntos todos os dias. De vez em quando, distraídos, perguntamo-nos se não estaremos talvez a passear com a pessoa certa: mas o mais provável é que não. Estamos demasiados tranquilos; a terra e o céu não mudaram; os minutos e as horas passam com sossego, sem rebates profundos no nosso coração. Já nos enganámos muitas vezes: julgámo-nos na presença da pessoa certa, e não era ela.
—Natalia Ginzburg, As Pequenas Virtudes, As Relações Humanas, Relógio D’Água 2021 (1972)
As pessoas do outro sexo andam ao nosso lado, roçam em nós ao passar na rua, têm talvez pensamentos ou intenções a nosso respeito que nunca poderemos conhecer; Têm na mão o nosso destino, a nossa felicidade. Entre elas existe talvez a pessoa que seria boa para nós, que poderia amar-nos e que nós poderíamos amar: a pessoa certa para nós; mas onde está ela?
—Natalia Ginzburg, As Pequenas Virtudes, As Relações Humanas, Relógio D’Água 2021 (1972)
Ainda assim, reflectia naquelas ocasiões secretas em que tinha de admitir para si próprio que havia algo de errado com a sua paixão, o amor sem posse jamais poderia, decerto, na natureza das coisas, ser o artigo genuíno. No seu diário registou adequadamente aquelas duas quadras de John Donne:
Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado
Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.
—Aldous Huxley, Contos Reunidos, Hubbert e Minnie, Antígona 2014 (1957)