H osana nas alturas, o Spotify anuncia “qualidade de CD” para o seu serviço! Tendo em conta que esse formato nasceu há 41 anos, trata-se de um verdadeiro milagre, devidamente assinalado pelas revistas Hi-Fi de “referência”. E tem tempo, visitando o site em português ainda não há nada.

É verdade que serviços com o Tidal, já oferecem isso e melhor (nesse caso a custar 13,99€ por mês), mas tenho sérias dúvidas que seja caso para despachar ou encostar uma colecção de CDs. No site clicando em “Sound Quality”, temos em vez disso, marketing puro e simples. Descendo bastante, ficamos a saber que a qualidade Hi-Fi é 16bits/44,1KHz, a do tal CD. A qualidade “Master” é MQA 24bits/96KHz (aparentemente com um máximo de 24bits/192kHz) — e é isto, na prática, a tão falada alta-resolução. MQA é uma discussão em si própria, para outras instâncias. No total têm 70 milhões de músicas e para sabermos quantas em Master, temos de consultar as perguntas mais frequentes.

A Realidade

How much music is available in Master quality?
We have millions of tracks across all genres, both from TIDAL’s artist owners and the music labels. We continue to add more Masters content weekly.

Tradução de conversa vazia para português: não muita.

Por um lado, quanta música se ouve num dia? E numa vida? Por outro lado, parece-me evidente que a esmagadora maioria da música que cada um quer ouvir não está nesses formatos chamados “alta resolução”. Fui à lista New Arrivals e interessaram-me dois, Ólafur Arnalds e Taylor Swift (eu sei, é estranho). Não conheço a maior parte e se calhar até gosto, soa bem e tudo mais, mas teria de me adaptar — o que já faço em parte no vinil, mas por uma razão que ficará para desenvolvimento posterior e que é a extraordinária qualidade de algumas edições.

Um DAC de referência e estou a utilizar esta palavra como sinónimo de extrema qualidade e preço (sempre muito para cima de 20.000,00€, o dobro e mais) anuncia uma qualidade máxima de 32bit/768KHz. Para tocar o quê? Ficheiros de demonstração e muito pouco mais. Num site como o HD Tracks conseguem-se alguns álbuns de 24bits/352,8KHz por $44,00USD ou DSD256 ainda mais caros. Esta malta da música é como o George Lucas, se podem vender a mesma coisa uma dúzia de vezes, não a vão vender só uma. Portanto, primeiro foram despachados muitos vinis porque vinha aí o milagre do CD que o Spotify ainda anda por aí a anunciar; depois foram despachados muitos CDs substituídos no máximo por “qualidade iTunes” (AAC 320Kb, sou um optimista). Quem quiser qualidade marginalmente melhor que o CD, paga outra vez. Quem quiser qualidade realmente melhor que o CD, paga muito mais. E em qualidade DSD256 ainda paga mais um bocadinho. Mas a realidade é que a música digital de “alta resolução” se fosse imagem seria o equivalente a 1080p e o paralelismo nem é mau — não ando propriamente a ver muitos filmes nos gloriosos 4K (zero) — o melhor é comprar já uma televisão de 8K. A verdade é que o CD, que neste caso seria uma pobre imagem 720p, num leitor actual consegue debitar uma qualidade a todos os títulos surpreendente. Só um crente em milagres é que paga para os substituir por mais do mesmo, ou menos.

A Minha Realidade

Quanto mais tempo passa, menos tempo tenho. Esta evidência evade a esmagadora maioria das pessoas e o que quero dizer é o seguinte: Para que são 70 milhões de músicas, se nem as 70.000 (para facilidade de linguagem) que já tenho neste momento irei ouvir até ao fim da vida?

A colecção tem 1.100-1.200 CDs e o espaço correspondente. Desses, pelo menos 50% já não me interessam para nada, cumpriram uma função há anos. Quando compro um, tento retirar outro, que habitualmente dou a alguém. Não quero ocupar mais espaço com CDs.

Na minha opinião, em qualidade absoluta primeiro vem o DSD (o formato do SACD), depois o vinil e depois o CD. Mas o que mais gosto é do vinil. Gosto do ritual, gosto do som e gosto de parar para ouvir música e é assim que ouço, parado. E há virtualmente tudo em vinil, o que não há complemento quase sempre em CD. Consigo felizmente comprar praticamente tudo o que quero, o que corresponde de certa forma ao que consigo ouvir realisticamente. O streaming não me cabe na cabeça. O grande argumento é “milhões de músicas!”, para um pobre homem só com dois ouvidos e apenas 24 horas por dia. E o outro é a “conveniência!”. Só se for a conveniência de “tocar” música ambiente nos elevadores e nos centros comerciais. A conveniência de ouvir música a metro ou como ruído de fundo. Uma terceira tentativa pode ser “a qualidade extraordinária!”. Duvido muito, talvez nos poucos ficheiros DSD que justifiquem a existência dos tais DACs extremamente caros que acabam por funcionar como leitores de CD glorificados. Dou facilmente 50,00€ por um vinil, nunca daria isso pelo mesmo álbum em DSD256 ou, pior ainda, por quatro meses de Tidal.

Vitsoe 606

Parte da colecção de CDs.

Eu sei que teoricamente o vinil não chega ao CD e na minha opinião é literalmente na teoria — no papel. Na prática, suplanta-o de longe e é o que me soa melhor. A minha tese é que ainda ninguém faz a mínima ideia de como se ouve e pior, como cada um ouve e o que cada um realmente ouve. Eu acho que maior gama dinâmica do CD chega a uma série de frequências que em conjunto são incomodativas para o ouvido médio. O vinil não chega lá e é isso que cria descrições como “orgânico” ou “som quente”, em suma “mais humano”, ou pelo menos mais adaptado ao humano, porque como é sabido o que nos chega aos ouvidos é sempre analógico — daí a existência do DAC. Como se não bastasse, os vinis estão cada vez melhor (nem todos!) e o CD atravessou uma fase — a loudness war (Wikipedia) — que em parte ainda dura, que os tornou cada vez mais intragáveis. A tal gama dinâmica superior, serviu de muito.
Vou dar alguma razão à conveniência. O vinil ocupa imenso espaço. Afinal não vou. Imaginem que depois desta estopada Covid-19 vem o apocalipse zombie — e como sabem, já faltou mais. Eu o antigo, vou continuar a ouvir música. Tu o moderno do streaming vais ter de aprender a tocar ukulele.

A Excepção

Não há boa regra, especialmente em Portugal, que não tenha a sua excepção. É maravilhoso e ao mesmo tempo cruel haver tanta boa música à disposição, mesmo muita. E música assim-assim há muita mais, já para não falar da quantidade gargantuana de música merdosa. Durante largos anos, julgo que até hoje, perdeu-se a noção de álbum, lá está, com os rumores francamente exagerados da morte do vinil. Nesse sentido, há muitos “álbuns” de hoje que resolvo com uma música, duas, no máximo. E é nesses casos que realmente considero que não faz sentido comprar um CD e muito menos um vinil. Com um ou dois ficheiros digitais a preço aceitável, resolvo o problema — o único senão é que a esmagadora maioria da música disponível está num formato pior que o CD — AAC 320Kb da Apple ou uma versão de MP3 igualmente com 320Kb (repare-se nos downloads incluídos na compra de muitos vinis).

Eu percebo que no fim do dia, esta é uma escolha meramente pessoal de acordo com os gostos e possibilidades de cada um e que valerá muito pouco a pena discutir. Só não deitem já fora os CDs. Se os ouvirem numa boa aparelhagem, vão reparar que é uma colecção praticamente nova. Já me aconteceu isso, não uma vez, mas várias. E melhora sempre.