Hoje em dia já ninguém lá vai, aquilo está cheio de gente

Artigos etiquetados “amizade

Desapareceu-me

Publicado em 20/12/2023

— A Raffaella certamente não pensa que é infeliz. Enterrou todos os seus pensamentos. É infeliz mas faz de modo a não o dizer, para poder viver.
— E, aliás — disse —, acaba-se sempre por viver assim.
— E tu também — disse eu — com o tempo, à medida que avança, acabarás por enterrar os teus pensamentos? Acreditas nisso, tu?
— Claro — disse. — E até, de certo modo, já comecei. Se não como faria?
— Nestes meses — disse —, enterrei tantos dos meus pensamentos. Cavei-lhes uma pequena fossa.
— Que queres dizer? — disse eu. — Nestes meses, nestes últimos meses, desde que és meu noivo?
— Mas, sim, claro — disse. — E tu também o sabes. Estamos quase sempre calados, agora, juntos. E estamos quase sempre calados porque comecámos a enterrar os nossos pensamentos, bem no fundo, bem no fundo de nós. Depois, quando reaprendemos a falar, diremos apenas coisas inúteis.
— Dantes — disse —, ocorria-me dizer-te tudo o que me passava pela cabeça. Agora já não. Agora desapareceu-me a vontade de te contar as coisas. Aquilo que vou pensando, conto um pouco a mim mesmo e, depois, enterro-o. Depois, pouco a pouco, não contarei mais nada nem sequer a mim mesmo. Enterrarei tudo de imediato, qualquer vago pensamento, antes mesmo que tome forma.

—Natalia Ginzburg, As Palavras da Noite, Relógio D’Água 2023 (1961)

O Mais Provável

Publicado em 07/12/2023

Um dia encontramos a pessoa certa. Ficamos indiferentes, porque não a reconhecemos: passeamos com a pessoa certa pelas ruas dos subúrbios, ganhamos pouco a pouco o hábito de passear juntos todos os dias. De vez em quando, distraídos, perguntamo-nos se não estaremos talvez a passear com a pessoa certa: mas o mais provável é que não. Estamos demasiados tranquilos; a terra e o céu não mudaram; os minutos e as horas passam com sossego, sem rebates profundos no nosso coração. Já nos enganámos muitas vezes: julgámo-nos na presença da pessoa certa, e não era ela.

—Natalia Ginzburg, As Pequenas Virtudes, As Relações Humanas, Relógio D’Água 2021 (1972)

Se Éramos

Publicado em 19/11/2023

Quando lhe lembro esse nosso passeio de outrora pela via Nazionale, diz que se lembra, mas eu sei que mente e não se lembra de nada; e pergunto-me às vezes se éramos nós, aquelas duas pessoas, na via Nazionale de há quase vinte anos; duas pessoas que conversaram tão amena, tão delicadamente, ao pôr-do-Sol; que falaram talvez um pouco de tudo e de nada; dois amáveis conversadores, dois jovens intelectuais que passeavam; tão jovens, tão educados, tão distraídos, tão dispostos a fazerem um do outro um juízo distraidamente favorável; tão dispostos a despedirem-se um do outro para sempre, naquele pôr-do-Sol, naquela esquina de rua.

—Natalia Ginzburg, As Pequenas Virtudes, Ele e Eu, Relógio D’Água 2021 (1972)

Fogo

Publicado em 04/11/2023

Dedico este livro a um amigo meu, cujo nome calo. Não está presente em nenhum destes escritos, e todavia, em grande parte deles, foi ele o meu interlocutor secreto. Não teria escrito muitos destes ensaios, se não tivesse por vezes falado com ele. Ele deu legitimidade e liberdade de expressão a certas coisas que eu pensara.
Exprimo-lhe aqui o meu afecto, e o testemunho da minha grande amizade, que passou, como toda a verdadeira amizade, através do fogo dos mais violentos desacordos.

—Natalia Ginzburg, As Pequenas Virtudes (prólogo), Relógio D’Água 2021 (1972)