Hoje em dia já ninguém lá vai, aquilo está cheio de gente

Artigos etiquetados “poesia

Os Livros

Publicado em 14/12/2023

É então isto um livro,

este, como dizer?, murmúrio,

este rosto virado para dentro de

alguma coisa escura que ainda não existe

que, se uma mão subitamente

inocente a toca,

se abre desamparadamente

como uma boca

falando com a nossa voz?

É isto um livro,

esta espécie de coração (o nosso coração)

dizendo “eu” entre nós e nós?

—Manuel António Pina, Como se desenha uma casa, 2011

Jamais

Publicado em 20/10/2023

Ainda assim, reflectia naquelas ocasiões secretas em que tinha de admitir para si próprio que havia algo de errado com a sua paixão, o amor sem posse jamais poderia, decerto, na natureza das coisas, ser o artigo genuíno. No seu diário registou adequadamente aquelas duas quadras de John Donne:

Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado


Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.


—Aldous Huxley, Contos Reunidos, Hubbert e Minnie, Antígona 2014 (1957)

End of Summer

Publicado em 13/10/2023

After all things occurred to me,
the void occurred to me.

There is a limit
to the pleasure I had in form—

I am not like you in this,
I have no release in another body,

I have no need
of shelter outside myself—

My poor inspired
creation, you are
distractions, finally,
mere curtailment; you are
too little like me in the end
to please me.

And so adamant—
you want to be paid off
for your disappearance,
all paid in some part of the earth,
some souvenir, as you were once
rewarded for labor,
the scribe being paid
in silver, the shepherd in barley

although it is not earth
that is lasting, not
these small chips of matter—

If you would open your eyes
you would see me, you would see
the emptiness of heaven
mirrored on earth, the fields
vacant again, lifeless, covered with snow—

then white light
no longer disguised as matter.

—Louise Glück, A Íris Selvagem, Relógio D´Água, 2020 (obrigado C.)

O que há em mim é sobretudo cansaço

Publicado em 05/05/2023

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas –
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada –
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser…

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço…

—Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos, 1944