Hoje em dia já ninguém lá vai, aquilo está cheio de gente

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TV em Janeiro

Publicado em 31/01/2023

Conversations with Friends (primeira temporada, 2022)

Depois de Normal People, mais uma adaptação para série televisiva de um livro de Sally Rooney. Não sou grande apreciador dos livros, mas aparentemente sou das séries baseadas neles. É tudo “muito moderno”, mas mais uma vez o que me pasma é a simplicidade e naturalidade dos diálogos. Talvez sejam tão naturais por serem tão simples. A relação entre Frances e Nick consegue ser super intensa falando eles realmente pouco. Percebe-se a gradual desintegração de Frances à medida que a relação com Nick evolui, é um paradoxo facilmente explicável por ele ser casado, mas Nick, a única coisa que teria para de facto lhe pedir desculpa é gostar mesmo dela. O oposto não é exactamente verdade, pois Frances consegue ir a extremos de se inscrever no Tinder e ir para a cama com o primeiro palerma que lhe aparece, apesar do indivíduo gostar de Yates — sim, é sempre uma douta “grande conversa” — e do qual certamente nem o nome ficou a saber, no fim tendo-se esgueirado para fora de casa numa espécie de “walk of shame”. Claro que informa Nick do grande feito na primeira oportunidade, era esse o objectivo — noutras ocasiões, quando devia dizer a verdade, mente. É complicado. Eu tenho uma teoria que entretem a hipótese de existirem uma dúzia de vidas a ser vividas, sempre repetidas ao longo dos tempos e em todas as épocas — a verdade é que toda a gente acaba a fazer o mesmo. Nick só não está presente quando não pode, diz ele — I have this impulse to be available to you. All the time. —, mas quem se queixa da falta de reciprocidade é ela, esquecendo-se que quando se envolveram já ele era casado, não se foi casar só para a chatear, aliás, nem sabia que ela existia.
A partir do nono episódio as coisas tornam-se menos interessantes, mais previsíveis, embora não menos intensas. Frances é uma daquelas pessoas honestas que mente sempre sem necessidade, não resolvendo problema nenhum e criando mais uns quantos nesse processo. A modernidade toda faz finalmente a sua aparição mais explícita, a relação continua com o consentimento da mulher de Nick, mas fosse tudo assim tão simples. No fim, volta ao seu amor “não patriarcal”. Mas fosse tudo isso também assim tão simples.
Gostei imenso de Frances, a incrível estreante Alison Oliver, entre o desajeitado (mesmo fisicamente) e o melancólico. A banda sonora é, como seria de esperar, perfeita — na imagem que escolhi, está a tocar PJ Harvey, é um grande ambiente. Também gostei (bastante) da não utilização do agora cliché de mostrar as mensagens no ecrã, com um tipo de letra duvidoso e uns ruídos de mensagem… A solução de as mostrar no próprio telemóvel, nem que seja fugazmente retirando-se o significado pelo contexto, está muito boa. Aliás, a série está muito boa. À partida não haverá uma segunda temporada (baseada no livro pelo menos), o que será o ideal. Realizado por Lenny Abrahamson e Leanne Welham.
☆ ☆ ☆ ☆ ½

We Are What We Are (2020)

Mais um documento desta época de deplorável decadência e onde as dores de crescimento, a dificuldade em ser adolescente é exacerbada por questões periféricas que afectarão uma diminuta minoria, mas são sempre colocadas como se fossem universais. Vale pelo olhar para dentro de uma das 800 bases americanas no mundo, neste caso em Chioggia, Itália — comandada por uma lésbica (não ia inventar esta). Os soldados americanos onde se instalam levam a América atrás de si, com a junk food, o ar condicionado, a falta de valores, a corrupção, a hipocrisia, a droga, os talheres e pratos de plástico, e a cultura de fancaria. Independentemente de questões de género, casamento homossexual, politicamente correcto ou incorrecto, uma das coisas que saltam à vista é o mais completo desrespeito do excêntrico Fraser (Jack Dylan Grazer) pela sua mãe Sarah Wilson (Chloë Sevigny), a tal comandante da base. Que mundo miserável onde os filhos tratam assim as mães. O melhor desta série é o final, os últimos 10 minutos (sem ironia), onde sem diálogo se consegue uma sequência muito bonita e um belo final, muito bem acompanhado por uma música de Prince (The love We Make). Criado por Sean Conway, Paolo Giordano e Luca Guadagnino.
☆ ☆ ☆

Noutro

Publicado em 01/11/2020

Mal acabei de ler “A Vida Mentirosa dos Adultos” de Elena Ferrante, comecei a ler “Herzog” de Saul Below, o que já devia a mim próprio há uns anos. No fim da segunda página já estava esmagado pela diferença de escrita dos dois. E, lamento imenso, Saul Below está verdadeiramente noutro patamar.
E, se recuar para o livro anterior, o normal “Pessoas Normais” de Sally Rooney, posso simplesmente dizer que Rooney está para Ferrante, como Ferrante está para Below. Se estas comparações não fazem qualquer sentido, não faz mal, não percebo nada de literatura, mas sei do que gosto.

Pessoas Normais

Publicado em 17/10/2020

O romance não me parece tão bom como as favoráveis críticas da contracapa deixariam antever. Na escrita pelo menos. Na tradução, que foi o que li, senti por várias vezes o tom da básica redacção do liceu. Ou não me parece tão bom como a série — da qual gostei muito mais.

É uma história de amor, mas tão contemporânea, que algumas coisas não poderiam acontecer senão agora. Não consigo estabelecer qualquer ligação a elementos do romance clássico. Nestes existia sempre uma impossibilidade real, pela distância — numa época em que se demorava meio ano a atravessar o oceano, sem garantias de chegar; pela estratificação social que era observada de forma estrita; em última análise, por se arriscar de facto a vida ao amar a pessoa errada. Aqui nada disso existe. O que existe isso sim, são pessoas desnorteadas, com tantas auto-impossibilidades de verdadeira intimidade, como facilidades em se envolver com quem não interessa realmente nada, ou não lhes deveria interessar de forma nenhuma. Foi ele que começou, por uma imaginária questão de popularidade no secundário. Ela continuou, na faculdade, já obviamente com outro namorado e os papéis invertidos, Connell apagado e sem amigos, Marianne integrada e conhecida de todos — no seu próprio meio. A importância do estrato social é tão negligenciável que Marianne não retira daí qualquer vantagem para além de alguns proveitos materiais — pelo contrário, é meia-comunista, quanto mais não seja para chatear a família. Connell nem por ter conquistado a menina rica no liceu, quer ser visto com ela.

Pessoas Normais de Sally Rooney

Editado pela Relógio d’Água, com tradução de Ana Falcão Bastos.

Depois de mais um reencontro e estando aparentemente tudo bem, Connell tem de regressar a casa no Verão, designadamente por questões económicas, passada uma semana já Marianne anda com outro, um indivíduo vagamente detestante — desrespeitador, narcisista e arrogante, com a mania que é inteligente, aquilo a que chamo habitualmente um bandalho. Uma relação que dura pelo menos um ano, uma verdadeira eternidade para o meio e para as pessoas normais. Na série é absolutamente inexplicável a forma como Connell sai de cena, da possibilidade de passar o Verão com Marianne, de viverem juntos, numa época em que tudo lhes está a correr bem. No livro consegue-se vislumbrar algum do processo interior, mas de uma forma ou de outra, é algo que só poderia acontecer nesta normalidade.

Quando Marianne vai para a Suécia o e-mail de Connell transcrito integralmente é pateticamente fraco, vindo do melhor aluno de inglês e sendo os mails dele já anteriormente referidos por Marianne como muito bons. Soa a falso de uma forma até surpreendente, revelando que a autora está muito longe de se conseguir colocar na pele e na cabeça do mais inteligente personagem masculino do livro. Aliás, não deve ser exactamente uma coincidência que a Marianne da série — a mais inteligente personagem — apresente evidentes semelhanças com Sally Rooney, que fala do que sabe.

Na Suécia, o seu comportamento sexual desviante atinge o auge com Lukas, de cabelo tão loiro que parece branco. Na série preferiram escolher um sueco típico, negro, de cabelo… preto, tipo carapinha. Felizmente a literatura está mais imune a esta mania imposta pelas hordas de analfabetos que conquistaram as universidades e os microfones — talvez porque não leiam. Mesmo assim, a autora não deixa de acenar a uma série de “causas” muito queridas dessa franja… Marianne vem de uma família endinheirada, tradicional e no entanto completamente disfuncional, o que ajudou a torná-la um destroço; já Connell é filho de mãe solteira muito jovem, o seu “erro de juventude” e no entanto tem apoio familiar, e é minimamente equilibrado. Para Marianne a janela para a “felicidade real” é um casal lésbico seu conhecido, não algum casal heterossexual que apareça, designadamente os pares que ela própria forma a cada passo com espantosa facilidade. Inteligente que é, reconhece não ser boa pessoa por dentro, por muito que se esforce para ser correcta. Dá ideia que há uma permanente consumição e sabotagem de algo que poderia e deveria ser bom, pelo menos, a maior parte do tempo.

Sem querer revelar muito, acaba mal, embora os optimistas possam achar que é suficientemente ambíguo e que na verdade acaba bem. Mas não, de forma nenhuma, o final é a derradeira e eventualmente maior sabotagem de Marianne. É a Lucy, mais uma vez a retirar a bola ao Charlie Brown, no último momento e logo quando ele a ia chutar com toda a força. Poderia ser o chuto da sua vida, mas ela não deixou. Aquela relação só tem futuro como algo incompleto, sempre quebrado, sempre insatisfatório.

Não há nada de especial neste romance, Sally Rooney o que consegue é de uma forma simples, apresentar um retrato acabado da sociedade onde imperam os peregrinos, deambuladores (flâneurs), vagabundos e jogadores que Zygmunt Bauman viu e anteviu, designadamente nos livros “Amor Líquido” e “Vida Fragmentada”. Chega a ser perturbador o directo que se tornam esses títulos depois de ler “Pessoas Normais”, basta o prefácio de “Vida Fragmentada” para se identificar imediatamente Marianne e também Connell, embora de forma menos gritante. A única coisa genial neste livro, é o título. Sim, pessoas normais, quanto mais não seja porque são muitas, muito provavelmente já a maioria.

Sabe

Publicado em 23/09/2020

Sabe que desde muito cedo a sua vida foi anormal. Mas agora o tempo cobriu muito, do mesmo modo que as folhas caem e tapam um pedaço de terra até acabarem por se misturar com o solo. As coisas que lhe aconteceram estão enterradas no seu corpo. Tenta ser boa pessoa. Mas, no mais fundo de si, sabe que é má, corrupta, falsa, e todos os seus esforços para ser recta, para ter as opiniões correctas, para dizer as coisas certas, só disfarçam o que tem enterrado dentro de si, o seu lado maléfico.

—Sally Rooney, Pessoas Normais